quarta-feira, 26 de agosto de 2009

INTERAÇÃO DE ALUNOS DE DIFERENTES NACIONALIDADES EM SALAS DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA

Texto de Denise Barros Weiss - disponível em http://www.ichs.ufop.br/conifes/anais/EDU/edu1007.htm


O campo de trabalho em que se insere este texto, o português visto como uma língua estrangeira, é relativamente pouco conhecido no Brasil. É, assim, um espaço em que muitas discussões ainda estão em aberto. Entre elas destacamos uma, que tem repercussões diretas na prática do profissional do setor: como trabalhar em uma sala de aula multicultural. Neste texto o objetivo é analisar algumas das características desses grupos de alunos e o papel do professor que trabalha com eles.

1. Relações interculturais: um pouco da teoria

O conceito de cultura que norteará este artigo será o que foi apresentado por Itacira Ferreira: “queremos nos referir, aqui, a todas as atividades do fazer e do pensar humanos, além das experiências, leis e normas que determinam a convivência, principalmente as atitudes dos homens diante do novo e do estranho, assim como diante das diferentes idéias e sistemas de valores e formas de vida” (FERREIRA, 1998, p.40).
Chama a atenção nesse conceito a referência à reação diante do novo que, na sala de português como língua estrangeira, é de grande importância no desenvolvimento das relações interpessoais.
Alunos e professor de língua estrangeira entram em contato uns com os outros em uma situação especial e delicada. Pessoas que não se conhecem, que não partilham, em princípio, a mesma língua nem a mesma cultura, passam a conviver quotidianamente. O objetivo explícito para essa reunião é o ensino/aprendizagem da língua e a cultura de um país estrangeiro. Entretanto há ali, conforme já foi visto, outras trocas do que essa.
Cada aluno, assim como o professor, chega à sala trazendo como bagagem sua vida e suas experiências pregressas. Não tarda muito para que os outros queiram saber sobre essas experiências, e aí surge um feixe de relações imprevistas, de que o currículo previamente organizado pelo professor não dá conta e que interfere no comportamento e no rendimento da turma. Trata-se, fundamentalmente da manifestação do processo que Hanvey, citado por Schlatter (1996, p.16-7) chama de conscientização cultural:
No estágio 1, a informação sobre a cultura de outro povo consiste de traços superficiais, fatos isolados e estereótipos. A cultura é tida como estranha, bizarra e exótica. Os indivíduos da outra cultura são muitas vezes considerados rudes, ignorantes, lhes falta um certo refinamento. No estágio 2, a informação é ampliada com os traços que contrastam com a própria cultura. O comportamento dos indivíduos é tachado de irracional, irritante e sem sentido. No 3º estágio, a cultura estrangeira começa a ser aceita no nível intelectual, tornando-se pois aceitável porque pode ser explicada. O comportamento passa a ser interpretado através do parâmetro da própria cultura estrangeira. Finalmente o último estágio é o da empatia. O indivíduo começa a ver a cultura como se pertencesse a ela e pode assim sentir o que o nativo sente.

O autor certamente se referia ao processo de aculturação à língua-alvo, mas é possível apropriar-se desse escalonamento e ampliar seu raio de ação para que abranja também as relações que os alunos têm com as demais culturas com as quais convivem em uma sala multicultural.
Em uma primeira fase desse relacionamento, os envolvidos no processo (incluindo-se aí alunos e professores) tendem a olhar uns para os outros com base em conceitos já muito arraigados. É como se a sala de aula não fosse formada por pessoas, mas por nacionalidades. Não existe o John, mas um americano, nem o Hideki, mas um japonês. Na falta de referências específicas, todos usam as imagens estereotipadas que têm sobre os países de origem dos colegas. O professor também é identificado de acordo com o mesmo critério.
Nessa fase, costumam ocorrer muitos enganos, e às vezes problemas até bem sérios, dependendo do grupo que se formou, conforme se verá na próxima seção .
Rod Ellis, em seu Second Language Acquisition, ao tratar das identidades sociais explica que “aprendizes de língua têm identidades sociais complexas que podem ser entendidas somente em termos de relações de poder que dão forma a estruturas sociais[1][2]” ELLIS (1997, p.40)
Uma sala de aula de língua estrangeira é, portanto, não apenas um lugar onde se reúnem pessoas interessadas em receber informações novas, mas um espaço privilegiado de discussão e um microcosmo de relações sociais organizado e reorganizado continuamente. Ao se reunirem pessoas de diferentes origens, a língua alvo torna-se, mais do que uma disciplina a ser estudada, o meio, muitas vezes único, de se estabelecer a comunicação e o entendimento mútuo. Quando há de fato interesse nesse entendimento, existe um crescimento do grupo em direção a níveis mais elevados de proficiência. Entretanto, se alguém fica de fora, corre um sério risco de perder oportunidades de interação e provavelmente terá dificuldades em atingir tais níveis de proficiência.
Uma pista para se compreender o que pode significar o caminho percorrido pelo aluno estrangeiro, quando vai imergir na cultura alvo, pode ser o que explica BASTOS (1999, p. 9-10):

O modo de vida vigente, ou a realidade consensual, pode ser entendido, a princípio, como o modo de subjetividade homogenética. Ilustrativamente, pode-se dizer que, quando há rupturas na subjetividade homogenética, surgem possibilidades de outros modos de existir diversos até então. Em outras palavras, aqui aparecem, então, certos modos de subjetividade heterogenética ou mutante.

Pode-se considerar o momento da decisão de se sair do país como um momento de quebra da subjetividade homogenética. Quando alguém se dispõe a dedicar um ano de sua vida (ou sua vida toda) ao projeto de viver outra cultura, pode-se dizer que ele já não corresponde mais ao estereótipo da cultura na qual nasceu e foi criado. É alguém que já se percebe um pouco diferente em relação aos demais de sua comunidade. Há algum grau de insatisfação com sua vida que o faz buscar um espaço diferente, uma interação com outras coisas. Quando ele sente a necessidade dessa busca, já está um pouco aberto para a apreensão dessa outra realidade.
Paul Claval, em seu livro A geografia cultural, assim se refere à experiência do relativismo cultural:
Ao freqüentar vários grupos, descobre-se rapidamente a relatividade das convenções e das normas que os caracterizam. Enquanto se permanece prisioneiro de uma outra cultura, então tudo parece assinalado pela marca da necessidade, tudo parece legítimo. Os costumes, as instituições, os mitos, as crenças são tidos como normais e parecem depender mais do registro da natureza do que da criação humana.
O desenraizamento libera ao permitir comparações: toda sociedade deve enfrentar necessidades e assegurar serviços, mas há mil maneiras de consegui-lo. Para quem conhece muitas culturas, nada permite afirmar a priori que uma solução seja superior a outras.
As situações de contato cultural abrem assim a via aos questionamentos. Fazendo descobrir outros códigos e outros sistemas de regras, convidam ao questionamento das bases do universo no qual se vive. (CLAVAL, 1999, p.106)

Mas entre a vontade, algo utópica, de viver o diferente, e a realidade de sair de seu locus vivendi e entrar em outro, existe um processo longo, não isento de sofrimento. A passagem não se dá sem que haja um estranhamento diante do diferente, uma comparação com aquilo que lhe é caro, até que haja, finalmente, a compreensão e a aceitação da outra cultura. Esse processo é especialmente sofrido quando o aluno sai de seu país por motivos tais como a guerra ou a necessidade premente de aceitar um emprego em outro lugar.
Almeida Filho chama a esse processo “desestrangeirização”. Em suas palavras,

É preciso lembrar também que a desestrangeirização é um processo que não termina por transformar o aprendiz num novo falante nativo da outra língua. Muitos aprendizes bem-sucedidos logram avançar até níveis de impressionante parecência com padrões nativos de desempenho lingüístico-comunicativo, mas ainda assim não poderiam ser, a não ser em casos raros, confundidos com verdadeiros falantes nativos. Essa aparente limitação não representa para aprendizes maduros nenhum prejuízo, uma vez que gozam já de uma plenitude lingüística em suas línguas maternas onde vivem culturalmente integrados. (ALMEIDA FILHO, 1996, p. 21)

Costuma haver uma expectativa de que, ao final do processo de aquisição de uma segunda língua, o aluno estrangeiro se torne uma cópia fiel de um falante nativo. Mas ele não quer e nem pode se encorajado a aspirar algo assim - já que isso demandaria a perda completa de grande parte de sua vida anterior e o tornaria, muito provavelmente, uma caricatura do que ele crê ser o falante nativo típico. Assumir que se vai ser diferente é um grande passo na imersão na cultura alvo.
Segundo Ferreira, “não é objetivo da aula de língua fazer com que o aluno internalize profundamente as formas de pensamento e conduta da outra cultura, pois para que haja uma comunicação cultural satisfatória não é necessário ocultar sua condição de estrangeiro”. (FERREIRA,1998, p. 43)
O processo de destrangeirização se dá de dois modos que atuam em maior ou em menor grau, ainda que simultaneamente, ao longo do tempo: aquisição e aprendizagem. Adotaremos aqui a postura de Krashen, que distingue (ao contrário de Rod Ellis) esses dois processos.

a aquisição é um processo subconsciente de construção criativa usado por crianças e adultos ao adquirirem a primeira e a segunda línguas. A aquisição é natural e por isso muito se assemelha à maneira pela qual a criança adquire a primeira língua, enfatizando-se a necessidade de comunicação e não a forma lingüística. A aprendizagem de uma língua, por outro lado, é um processo consciente através do qual regras são assimiladas e observadas. (KRASHEN,1982, p.10)

Tanto a aquisição quanto a aprendizagem ocorrem na sala de aula de língua estrangeira. A formalização é, de modo geral, parte importante das expectativas do aluno quando se dispõe a aprender uma segunda língua em um curso, especialmente quando está em contexto de imersão, como é o caso dos alunos que vêm para o Brasil. Ela se dá prioritariamente na relação professor aluno(s). Por outro lado, a aquisição, espontânea, se processa prioritariamente no trato entre os alunos na sala.
Uma parte fundamental do processo se dá pela compreensão da cultura-alvo. Na sala de aula, tradicionalmente se atribui exclusivamente ao professor o papel de divulgador dessa cultura. No caso em apreço, porém, que é a o de alunos em imersão na cultura-alvo, o que a experiência tem mostrado sugere um quadro diverso. Muitas vezes são os próprios alunos que apresentam aspectos da cultura brasileira uns para os outros, durante suas conversas em sala. Cada um compartilha com os colegas e com o professor sua ponto de vista a respeito daquilo que viu e experimentou. Essa leitura dos diferentes aspectos da cultura alvo, feita por pelo aluno estrangeiro, ajuda os outros da turma que ainda não tiveram aquela experiência a compreendê-la, ou ao menos a se prepararem para ela. Permite ainda ao professor conhecer o que o aluno pensa sobre o tema e colaborar para que ele tenha uma informação mais abrangente, mostrando-lhe sua própria visão, como nativo daquela cultura..
Mas é oportuno lembrar que o aluno que aprende uma língua não o faz para poder falar da cultura alheia mas, prioritariamente, para falar de si mesmo, para se apresentar e apresentar sua cultura e sua maneira de pensar aos outros. Isso também é fonte de discussões freqüentes durante os cursos de língua estrangeira. A professora Lygia Trouche descreveu assim sua experiência no programa de Português para estrangeiros da Universidade Federal Fluminense:

Como num jogo de espelhos, as diversas culturas representadas por alunos alemães, japoneses, norte-americanos, de São Salvador e da Nova Zelândia entram em contato numa busca de reconhecimento de identidades nacionais específicas e de possibilidades de compreensão mais profunda, em nível humano, numa troca de experiências de vida e modos de ser diferentes. (TROUCHE, 1996, p. 71)

A língua-alvo torna-se meio de comunicação progressivamente mais efetivo das necessidades e questionamentos de cada um, proporcionando negociações de sentido sempre mais sofisticadas. O nível de interação entre os aprendizes é, nessa perspectiva, essencial para possibilitar mais oportunidades de crescimento e de compreensão do outro. Além disso, é um dos elementos necessários à baixa do chamado filtro afetivo, que interfere na capacidade de o aluno atingir níveis mais altos de proficiência na língua-alvo.
Entendemos aqui proficiência na acepção de Ommagio, tal como foi resumida na dissertação de mestrado da autora:

Omaggio (1986) propõe considerar a proficiência não como o ponto final de uma trajetória de aprendizagem ou aquisição de língua, mas como um conceito escalar, específico para a análise de aprendizagem de língua estrangeira, que serve de base para uma estruturação dos objetivos de ensino, dando as diretrizes que levarão o aluno a atingir níveis de conhecimento da língua-alvo. Esses níveis são estabelecidos com base em habilidades específicas que devem ser adquiridas. (WEISS, 1994, p.68)

Wolfang Klein, em seu livro Second language acquisition, (KLEIN, 1986) informa-nos que há condições que determinam a propensão de um aprendiz a ter sucesso na tarefa a que se propõe. Segundo ele, a propensão cobre a totalidade dos fatores que fazem com que o leitor use sua faculdade de linguagem para aprender uma segunda língua. Alguns desses fatores são positivos, outros negativos. Não é fácil determinar quais são os fatores nem mensurá-los, mas é importante analisá-los porque eles não afetam igualmente todos os aspectos da aprendizagem e podem ser afetados por fatores externos. Dentre os que ele cita, destacamos o que ele chama atitude.
A atitude compreende a relação até certo ponto emocional que o aprendiz tem com a língua alvo. Estão incluídos aí os preconceitos, a admiração pelo povo, o "status" que a língua possui no conceito do aluno, etc. A atitude pode assumir certas formas menos óbvias, tais como a preocupação com a perda da identidade social , a sensação de que aprender uma certa língua, cuja proximidade com a língua materna do aprendiz é grande, é perda de tempo, o medo de revelar suas dificuldades na hora de produzir enunciados, que faz com que o aluno não queira falar ou escrever. Em alguns desses casos, parece haver uma atitude não só frente à língua, mas frente a outros comportamentos sociais.
Influenciada em grande parte pelos estereótipos vigentes, a atitude é especialmente forte na fase de adaptação do aluno no país estrangeiro. Nessa adaptação manifesta-se muitas vezes o medo do desconhecido.
Uma frase de um aluno do curso de Português para estrangeiros que já está no Brasil há aproximadamente um ano, ao conversar com um recém-chegado, ilustra bem qual é o peso do filtro afetivo no processo de desestrangeirização. Quando se comentava em sala a respeito da adaptação desse modo aluno, ele disse que não sabia o que fazer com seus pertences, já que não conseguia confiar nas pessoas com quem estava convivendo no lugar que escolhera para morar, o aluno mais antigo se manifestou, dirigindo-se especificamente ao recém-chegado:

John, quando eu cheguei, também tinha medo. País diferente, povo estranho. Mas, com o tempo vi não era assim tão perigoso.

Vista pela ótica de outro estrangeiro, a situação em que o aprendiz se encontra deixa de ter o peso da solidão. Um se apóia no outro na tentativa de traduzir para si o mundo estranho em que se encontra. Nesse caso, a interferência do professor, um nativo, não teria a mesma força.
A sala de aula pode se tornar, então, o lugar em que as múltiplas identidades se entrecruzam. Um caldeirão onde são problematizados os modos de cada aluno ver o mundo e de apreendê-lo. Não é espaço, portanto, de veiculação de uma cultura-alvo, somente, mas de trocas de experiências de indivíduos portadores de múltiplas culturas, que, em contato, mudam e complexificam suas relações, revêem seus conceitos e (re)criam suas identidades.

2. Ensinar português como língua estrangeira em salas multiculturais

O professor de português como língua estrangeira tem, como campo de trabalho, no Brasil de hoje, três grandes áreas.
Na primeira estão as turmas formadas geralmente funcionários de empresas estrangeiras que precisam ser habilitados para aumentarem a fluência em português. Nesse caso, é bastante comum a formação de turmas homogêneas (de alemães, de americanos, de franceses, de acordo com a nacionalidade da matriz). Uma característica dessas turmas, sob o ponto de vista do professor, é a possibilidade de tratamento homogêneo (até certo ponto) das questões culturais, feito através da comparação da cultura materna à alvo. Nesse processo, os alunos, com suas singularidades, fornecem o contraponto às informações, opiniões e crenças do professor, representante da língua-alvo. Ao trabalhar com essas turmas, o professor tem condições de se especializar na cultura dos seus alunos, preparando de antemão atividades que versem sobre temas que ele domina. Assim, um professor que tem em sala somente alunos alemães, por exemplo, pode trabalhar com temas da história do país, enfocando-os sob as óticas brasileira e alemã, com a relativa segurança de conhecer previamente os pontos de vista prováveis de cada parte envolvida.
A segunda área de trabalho é a das aulas particulares. Caracteriza esse tipo de atividade a interação de um para um entre professor e aluno. As trocas se realizam quase exclusivamente entre eles. A comparação entre as culturas se dá no contato de dois indivíduos, com suas crenças e preconceitos, geralmente confrontados. O processo de preparação das aulas é semelhante ao das aulas para turmas homogêneas, diferenciando-se no nível das discussões, que costuma ser mais aprofundado.
Na terceira área temos o trabalho com turmas heterogêneas. Comuns nos cursos oferecidos em instituições tais como as universidades e cursos particulares, essas turmas costumam ser abertas a indivíduos de diferentes nacionalidades, já que freqüentemente não existe possibilidade de se criar turmas específicas, dada a grande variação na demanda. Nesse contexto, há uma pluralidade de culturas em contato, e o professor se torna o representante de uma delas. O contraste, então, será multidirecional, ainda que o foco das comparações seja, a princípio, entre as culturas maternas dos alunos e a cultura-alvo. Nesse caso, torna-se quase inviável para o professor o domínio, ainda que precário, das culturas representadas em sua sala de aula, seja pela diversidade, seja pela dificuldade de se obter as informações relevantes em cada aula preparada.
Em uma sala de aula com essas características, as relações são mais complexas. Há uma relação em foco: a que se considera principal, por ser, em princípio, a razão pela qual se reúne a turma, é a que ocorre entre o professor e os alunos. É, segundo a tradição educacional, uma relação assimétrica: o professor detém o poder de falar e de fazer calar. Ao aluno cabe o papel, quase passivo, de reagir ao que for proposto pelo professor, respondendo às questões que lhe forem dirigidas e fazendo perguntas (o que ocorre apenas eventualmente, em muitos casos). O aluno costuma procurar produzir um discurso mais formal, voltado em grande parte para o atendimento das proposições da situação de sala de aula. Está sempre presente a preocupação em ser proficiente na língua-alvo, mas nem sempre é primordial a comunicação de idéias, a troca de significados.
A segunda modalidade de interação é a que existe entre os alunos. Essa subverte a ordem da sala de aula e é temida pelo professor na aula chamada tradicional, que a considera perigosa para o bom andamento dos trabalhos.
Em uma sala de aula de português como língua materna, por exemplo, essa chamada “conversa paralela” é desencorajada pelo professor. Entretanto, em uma aula de português como língua estrangeira os alunos são encorajados a conversarem entre si, já que nessa atividade predomina o interesse genuíno pelo que o outro tem a dizer e, mesmo no contexto formal da sala, a troca tende a ser mais significativa, menos ditada pelas exigências de um programa de estudos e mais voltada para a informação.
A sala de aula multicultural favorece esse tipo de interação. Alunos de diferentes nacionalidades tendem a se sentir mais interessados na cultura do outro, nos seus pontos de vista. Por causa desse interesse as oportunidades de se usar a língua alvo (no caso, o português) se multiplicam.
É o que afirma Haiston, citado por Julia Gousseva em artigo publicado em The Internet TESL Journal: "Real diversity emerges from the students themselves and flourishes in a collaborative classroom in which they work together to develop their ideas and test them out on each other" (HAIRSTON,1992, apud GOUSSEVA, 1996)
Há, porém, complicadores nessa interação, que serão alvo de atenção neste artigo.

Como exemplos desse processo, serão aqui apresentadas duas situações vividas pela autora em turmas de português para estrangeiros do curso de Português para estrangeiros ministrado na Universidade Federal de Juiz de Fora (Minas Gerais), das quais ela foi professora.
O primeiro grupo era formado por três alunos, rapazes entre vinte e trinta anos, oriundos da Rússia, da Iugoslávia e da Finlândia. Ocorre que finlandeses e iugoslavos guardam grande mágoa dos russos, por conta de divergências sérias, que já desencadearam guerras entre os países. A princípio, isso se refletiu, com bastante força, na sala. O aluno russo foi rejeitado pelos outros dois, que evitavam a todo custo, às vezes ostensivamente, realizar trabalhos em sala que fossem em grupo. Fora da sala, essa relação era certamente ainda mais difícil.
Dar aulas nessa turma foi um desafio. Sem a coesão entre os alunos, havia trocas exclusivamente entre a professora e cada um dos alunos, separadamente. As aulas se tornaram, então, um espaço de discussão quase exclusiva de itens de gramática, com poucas oportunidades de trabalho para o desenvolvimento das habilidades de comunicação oral.
A solução, encontrada depois de várias experiências frustradas de aproximação dos alunos, foi desviar o foco das tentativas de discussão do campo da nacionalidade de cada um para o da individualidade. Essa prática não é usual nas aulas de PLE preparadas em manuais didáticos. Com a mudança, as nacionalidades continuaram, é certo, referências importantes, mas deixaram de ser fonte primária de comparações. Com isso, estabeleceu-se uma situação menos belicosa. Com alunos menos armados, menos na defensiva (especialmente o russo) foi possível, ao final do ano, até uma revisão mais corajosa das relações entre os países. Nesse momento os três alunos, tão diferentes e tão feridos por suas experiências traumáticas nos países de origem, avaliaram, com ajuda mútua, a situação que tinham vivido, utilizando como ponte a língua portuguesa. Nesse caso, a ação das professoras foi fundamental para transformar o estranhamento inicial em uma atitude mais positiva frente às diferenças.
No segundo exemplo, houve uma situação diversa. A turma contava com um maior número de alunos (oito) e era composta por alunos de várias nacionalidades – japonesa, iugoslava, argentina, americana, canadense e australiana. Nesse grupo as dificuldades giraram em torno do aluno australiano. Arredio e difícil, chegou a ser grosseiro, tanto com as professoras quanto com os colegas. O restante do grupo, porém, tornou-se coeso, demonstrando um interesse mútuo crescente. Isso em determinado momento isolou o australiano, mas acabou por contagiá-lo. A turma, já mais homogênea, aceitou bem até a entrada de mais dois alunos, de nacionalidades húngara e francesa, embora esse último, ainda muito cônscio das diferenças entre seu país e o do aluno americano, tenha provocado algumas situações mais difíceis. Nesse grupo, prevaleceu o espírito de que é possível olhar para a própria cultura “de fora”, através das análises dos outros que não compartilham dela.
Por causa disso, ocorrem com freqüência situações em que o professor pouco interfere: as questões surgem naturalmente e são discutidas de modo equilibrado e respeitoso. Como resultado, notou-se que esses alunos atingiram graus mais elevados de proficiência mais rapidamente que alunos de mesma nacionalidade.
Aqui fica clara a importância da integração do grupo na sala para o estímulo à aprendizagem: quanto maior for o contato entre os alunos, feito através da língua estrangeira, maior será a chance de a fossilização ocorrer apenas em estágios mais avançados de proficiência. Ao contrário, se um indivíduo se isola (casos do russo e do australiano), ele não participa das discussões; não ouve, não fala. É o que diz ELLIS (1997:40) (tradução da autora):
“A pidinização na aquisição de L2 ocorre quando os aprendizes falham em aculturar-se ao grupo da língua-alvo, ou seja, quando eles são incapazes ou não têm interesse em se adaptar a uma nova cultura.” [2][3]
Nos exemplos descritos, vemos situações em que as relações entre os alunos, com a mediação – mais ou menos explícita - dos professores, interferem nos processos de ensino/aprendizagem da língua portuguesa. Mas como fica o professor frente a essas situações?
Ser professor de uma turma multicultural pode ser um risco ou uma oportunidade. Isso vai depender, fundamentalmente, da sua relação o com trabalho. Se ele se considera sempre o dono e senhor da comunicação na sala, se assume um discurso autoritário, se pretende sempre ter a última palavra e guiar todos os passos do aluno, uma sala assim representa para ele o pior dos mundos.
O professor precisa assumir uma postura de facilitador, de mediador. Deixar de contabilizar o tempo gasto com cada intervenção do aluno para prestar atenção real ao que ele diz. Abandonar as questões retóricas e já tão gastas (Como é sua cidade? Descreva o sistema de transporte) para dedicar-se a descobrir o que de fato pode constituir motivos de interação real. E aí reside seu maior desafio. Turmas heterogêneas têm, em geral, interesses igualmente diferenciados, portanto ficar atento para o que cada aluno traz pode ser útil na identificação de seus interesses, assim como dos prováveis pontos de convergência. Atividades diferenciadas podem, em certos momentos, fazer esse efeito. Mas o que tem funcionado bastante é dar aos alunos momentos totalmente livres, se possível fora da sala de aula, e escutar atentamente sobre o que eles conversam, então. Sem a pressão de estarem sob o olhar do professor, eles vão se soltar um pouco mais e aproveitar a oportunidade para conhecerem seus colegas e seu professor.
Uma aula de língua estrangeira com essas características desnuda tanto professor quanto alunos. Como as interações são reais, e não mais criadas com propósitos meramente “gramaticais” ou “funcionais”, todos terão de estar preparados para se revelarem mais. Para tanto a confiança entre os alunos deve ser estimulada - só assim eles se sentirão mais à vontade para errar, para experimentar, para arriscar.
Alunos oriundos de sociedades que exigem altos níveis de perfeição ou de competitividade (caso de japoneses e americanos, por exemplo) irão aos poucos aprender a aceitar seus enganos e a mudar alguns de seus conceitos sobre outras culturas. Isso lhes facilitará a compreensão da cultura alvo, já que não se fará uma comparação dual – a cultura materna e a do outro, mas se procurará conhecer diferentes modos de vida, relevados por indivíduos, não por cidadãos.
O fato de se relevar ao outro é, às vezes, desconfortável tanto para o professor quanto para o aluno. Muitas vezes os problemas com preconceito dentro da sala de aula partem do modo como o professor encaminha seu discurso, preocupando-se muito em realçar as diferenças entre os alunos e dedicando-se pouco a descobrir as semelhanças. Para não correrem riscos, alguns se refugiam nas gramáticas das aulas mais tradicionais A postura de simplesmente fazer e responder a perguntas cujo conteúdo é inócuo não interfere em nenhuma crença, não altera nenhum conceito de mundo. É, portanto, território conhecido, caminho já trilhado muitas vezes. São aulas previstas e previsíveis, com um contrato confortável.
Romper com esse tipo de aula é pisar terreno desconhecido, em que cada aula pode esconder surpresas de todo tipo, que vão de perguntas provocadoras de um aluno sobre as crenças religiosas do professor até dúvidas sobre aspectos gramaticais sobre os quais o mestre jamais pensou. O professor muitas vezes é confrontado com aspectos pouco agradáveis de sua vida com cidadão e como indivíduo. Esse tipo de questionamento não ocorre com freqüência na prática profissional do professor em outras salas, mas é comum em uma sala de português como língua estrangeira. Afinal, se o professor pode fazer perguntas pessoais aos alunos, eles também podem fazê-las. Entretanto é nesse embate que professor e aluno crescem juntos, aprendendo e (re)conhecendo as culturas, próprias e do outro.
Para tanto é preciso que o professor que assume uma sala multicultural esteja preparado para não agir nem com deslumbramento nem com desprezo pelas culturas ali representadas. È importante, também que ele veja no aluno um indivíduo, com a complexidade que lhe é inerente, e não o mero suporte de uma carga cultural imutável.
ALMEIDA FILHO nos apresenta um conceito de língua que se coaduna com o que se pretendeu apresentar neste texto:

Línguas indica mais do que os sistemas lingüísticos em si mesmos, linguagem humana, discurso como forma de ação social. A línguas são as construtoras da cultura e da autoconsciência, mostrando-nos identidades de quem somos e de quem podemos ser. Dita assim no plural, línguas se referem também às experiências em novas línguas desestrangeirizadas para seus aprendentes. (ALMEIDA FILHO, 1996, p. 19)

Para terminar, gostaria de apenas de lembrar: ao lidarmos com Português língua estrangeira, não estamos tratando com estrangeiros, mas com pessoas. Enquanto nós, professores, não compreendermos isso, e não percebermos nosso próprio etnocentrismo, não estaremos preparados para lidar com as (nem tão grandes) diferenças nem para reconhecer as (muitas) semelhanças. Se o fizermos, saberemos, como bem lembra Guimarães Rosa, que o que existe, mesmo e de verdade “é o homem humano”.

Referências bibliográficas

ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de. Desestrangeirização e outros critérios no planejamento de cursos e produção de materiais de língua estrangeira. In: JÚDICE, Norimar. (Org.) O ensino de português para estrangeiros; ciclo de palestras. Niterói : UFF, 1996.

BASTOS, Rogério Lustosa. Poética e psicanálise: Artepensamento entre campo ficcional e campo psicanalítico, diferentes subjetividades. PUC/São Paulo. Tese de doutoramento em Psicologia clínica. São Paulo, 1999.

CLAVAL, Paul A geografia cultural. Florianópolis : UFSC, 1999.

ELLIS, Rod. Second Language acquisition. Oxford : Oxford University Press, 1997.

FERREIRA, Itacira. Perspectivas interculturais na aula de PLE. In: SILVEIRA, Regina Célia P. da. (Org.) Português língua estrangeira: perspectivas. São Paulo : Cortez, 1998.

FREITAS, Maria Tereza Assunção de. (org.) Narrativas de professoras: pesquisando leitura e escrita numa perspectiva sócio-histórica. Rio de Janeiro : Ravil, 1998.
HAIRSTON, Maxine. Apud GOUSSEVA, Julia. Crossing Cultural and Spatial Boundaries: A Cybercomposition Experience. The Internet TESL Journal, Vol. IV, No. 11, Novembro de 1998. Disponível em http://www.aitech.ac.jp/~iteslj/. Acesso em 20 de março de 2000.

KLEIN, Wolfang. Second Language Aquisition. Cambridge : University Press, 1986.

OMMAGIO, Alice C. Teaching Language in Context. Proficiency Instruction. Boston, 1986.

SCHLATTER, Margarette. Inimiga ou aliada? O papel da cultura no ensino da língua estrangeira. In: SIPLE, Seminário da Sociedade Internacional de Português – Língua Estrangeira. 3. Anais. Niterói : Instituto de Letras- UFF, 1996.

TROUCHE, Lygia Maria Gonçalves. O Brasil no espelho – uma construção de linguagem. In: JÚDICE, Norimar. (Org.) O ensino de português para estrangeiros; ciclo de palestras. Niterói : UFF, 1996.

WEISS, Denise Barros. Ensino do artigo em cursos de português para japoneses. Dissertação de Mestrado em Lingüística. Rio de Janeiro : Faculdade de Letras, UFRJ, 1994. 115 p. mimeo.

[1][2] “...language learners have complex social identities that can only be understood in terms of the power relations that shape social structures”
[2][3] “Pidginization in L2 acquisition results when learners fail to acculturate to the target language group, that is, when they are unable to adapt to a new culture” (ELLIS, 1997:40).

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